domingo, 25 de agosto de 2013

O que vem a ser Cristocentrismo?


Cristocentrismo

          Para a fé cristã, as três pessoas da Trindade são igualmente importantes. Porém, Jesus Cristo apela de modo especial à sensibilidade dos crentes por representar a sublimidade e o mistério da presença pessoal de Deus no mundo em forma humana.
 
          O Novo Testamento é um testemunho eloquente da centralidade de Cristo para a cosmovisão cristã. De Mateus ao Apocalipse tudo gira em torno da pessoa e obra do Redentor.
 
          Duas tradições são particularmente marcantes nesse sentido: a joanina e a paulina. O Quarto Evangelho inicia com o grandioso prólogo a respeito da encarnação e atribui ao Verbo títulos, predicados e feitos extraordinários. Todavia, o apóstolo Paulo vai ainda além, pois não somente apresenta uma “cristologia elevada”, descrevendo o Filho de Deus de maneira exaltada e majestosa, mas acrescenta a isso um profundo elemento pessoal (“para mim o viver é Cristo”).

          Ninguém nega que a ênfase cristocêntrica do Novo Testamento em geral é de Paulo em particular, é fundamental para a identidade do cristianismo histórico. Ao longo dos séculos, muitos cristãos têm tido essa mesma preocupação, com inegáveis benefícios para a sua vida pessoal, para a igreja e para a sociedade. No entanto, por estranho que possa parecer, nem sempre o cristocentrismo tem sido uma ênfase saudável em certos grupos e movimentos, por causa das suas implicações. Muitas vezes a pessoa de Cristo pode ser enfatizada em detrimento de outros aspectos importantes da revelação bíblica. O cristocentrismo pode ser considerado sob três aspectos – espiritual, doutrinário e prático –, embora com frequência essas dimensões não possam ser dissociadas uma da outra.

1. Espiritualidade
 
          O nível mais básico em que os cristãos se defrontam com a realidade do Filho de Deus é a vida espiritual e devocional. Antes de ser um objeto de reflexão intelectual (teologia) e de imitação na vida diária (práxis), o Salvador requer uma resposta pessoal de fé, amor e obediência. Os primeiros cristãos sentiam ter uma conexão toda especial com ele: eram batizados em seu nome, confessavam o seu nome, sofriam pelo seu nome. Com isso, ele se tornava o principal ponto de referência de suas vidas e o elemento focal da sua devoção. Essa piedade centrada em Cristo se tornou característica de alguns dos períodos de maior vitalidade e autenticidade do cristianismo, encontrando a sua expressão maior em diferentes manifestações de misticismo.

          Exemplos de misticismo centrado em Cristo podem ser encontrados em todas as épocas. Na igreja primitiva, houve o caso do idoso bispo Inácio de Antioquia, que, ao ser levado para a execução em Roma no início do 2º século, escreveu sete cartas que acentuam a sua profunda identificação com Cristo. “Sou o trigo de Deus, moído pelos dentes das feras para tornar-me o pão puro de Cristo”, disse ele aos romanos. Na Idade Média, místicos como Tomás à Kempis e Teresa de Jesus produziram uma belíssima literatura devocional centrada na comunhão com Cristo. Um notável exemplo protestante foi o conde alemão Nikolaus Ludwig Von Zinzendorf (1700-1760), que disse certa vez: “Eu tenho uma paixão; é ele e ele somente”. Karl Barth referiu-se a esse personagem como “talvez o único cristocêntrico genuíno da era moderna”.

          No entanto, uma espiritualidade cristocêntrica se torna questionável quando leva à mera contemplação, passividade ou deturpações teológicas. Em 1913, nos primeiros tempos do pentecostalismo, surgiu nos Estados Unidos o “movimento da unicidade”, com a sua ênfase no batismo somente “em nome de Jesus”. Com o passar do tempo, verificou-se que se tratava de uma rejeição da doutrina da Trindade, relembrando a antiga heresia do monarquianismo modalista. Com isso, a maior parte dos pentecostais rejeitou esse ensino pretensamente cristocêntrico.

2. Teologia
 
          O cristocentrismo também pode se expressar na área do pensamento cristão, quando a pessoa e a obra de Cristo são colocadas no centro de alguns sistemas teológicos. Um bom exemplo antigo é Irineu de Lião, que viveu no final do 2º século. Em sua teologia antignóstica, o bispo da Gália articulou a influente “teoria da recapitulação”, segundo a qual não somente a morte de Cristo, mas a sua vida toda e em especial a sua encarnação tem um sentido redentor. Como o Deus encarnado, Cristo redimiu a natureza humana da corrupção do pecado, e como o segundo Adão ele reverteu os efeitos danosos da queda, encabeçando ou recapitulando uma nova humanidade restaurada. Esse cristocentrismo também se manifestou na hermenêutica dos pais da igreja em geral, com a sua exegese cristológica que buscava a Cristo em cada passo das Escrituras.

          A expressão “teologia cristocêntrica” por vezes tem sido utilizada para referir-se a sistemas teológicos mais recentes segundo os quais Deus nunca se revela ao ser humano a não ser através do Cristo encarnado. Baseando-se numa interpretação literal de Mateus 11.27 (“Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o filho o quiser revelar”), é negada a possibilidade de qualquer revelação na natureza e, portanto, de uma teologia natural. Entre os representantes modernos dessa posição estão teólogos como Albrecht Ritschl (1822-1889), Wilhelm Herrmann (1846-1922) e Karl Barth (1886-1968). O problema com essa abordagem à primeira vista saudável é o desprezo por outros meios revelatórios, tais como a ordem criada e a própria Escritura. Para a neo-ortodoxia, a Bíblia é vista não como a revelação de Deus, mas apenas como um testemunho humano dessa revelação.

3. Práxis
 
          Nenhuma expressão do cristianismo pode ser considerada realmente cristocêntrica se não produzir frutos na vida prática, em termos de testemunho e serviço. Talvez o melhor exemplo de uma genuína práxis cristocêntrica no período antigo seja o monasticismo. Os primeiros monges, conhecidos como “pais do deserto”, e aqueles que os sucederam, inspiraram-se diretamente nas palavras e na vida de Jesus. O fato de que Cristo viveu de maneira pobre e humilde, ministrando às necessidades materiais e espirituais das pessoas ao seu redor, fez com que muitos cristãos escolhessem um estilo de vida semelhante, numa imitação consciente de Mestre. Nos seus melhores momentos, o movimento monástico produziu frutos duradouros nas áreas de missões, educação e beneficência.

          No final do século 19 surgiu nos Estados Unidos um movimento muito influente que foi o “evangelho social”. Esse movimento, que teve como seu maior expoente o pastor batista Walter Rauschenbusch, foi uma resposta aos graves problemas sociais existentes na época, associados ao crescimento industrial, à imigração e à urbanização. Uma das características marcantes do cristianismo social foi a sua ênfase cristocêntrica, como ficou evidente na obra mais famosa ligada ao movimento, Em Seus Passos (1896), escrita pelo pastor congregacional Charles M. Sheldon. Essa conhecida novela mostrou o que poderia acontecer em uma comunidade dilacerada por conflitos sociais se os cristãos começassem a perguntar a cada momento: “O que faria Jesus?”.

          O evangelho social e o velho liberalismo ao qual estava associado insistiam num evangelho cristocêntrico simples, que desprezava peculiaridades confessionais de culto, doutrina e forma de governo. O problema é que esse “cristianismo de Cristo” podia reduzir-se a uma simples dimensão ética, correndo o risco de ser colocado em pé de igualdade com outros sistemas religiosos e filosóficos.

Conclusão
 
          A fé cristã tem uma contribuição singular e indispensável para o mundo. Essa contribuição, que nenhuma outra religião ou filosofia pode proporcionar, consiste na pessoa divino-humana de Jesus Cristo, o Filho de Deus. É importante que os fiéis, os pensadores e a igreja tomem a Cristo como o foco principal de suas ações e reflexões. Todavia, é necessário que isso seja feito sem que se sacrifiquem outros elementos valiosos da revelação cristã.

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